A entrevista ao Presidente da AFIA, José Couto, foi gravada antes do anúncio da retoma da produção da Volkswagen Autoeuropa, para o início de outubro
Para o presidente da Associação de Fabricantes Portugueses da Indústria Automóvel, as empresas nacionais do setor “mereciam” contribuir mais para a Autoeuropa, a fábrica da Volkswagen em Palmela
in Dinheiro Vivo / TSF, por Bruno Contreiras Mateus (Dinheiro Vivo) e Ana Maria Ramos (TSF), 16-09-2023
No balanço da primeira semana de paralisação da produção na Autoeuropa, por falta de uma peça fundamental para o T-Roc, José Couto, presidente do Conselho de Administração da AFIA, Associação de Fabricantes Portugueses da Indústria Automóvel, realça que o impacto é significativo nas empresas fornecedoras da fábrica da Volkswagen em Palmela, que tiveram de dispensar alguns trabalhadores e de colocar outros em lay-off. Após uma paragem inicialmente prevista de nove semanas, ontem a empresa avançou, numa nota aos trabalhadores, que vai retomar a produção no início de outubro, depois de ter garantido o fornecimento do componente em falta. José Couto adianta, no entanto, que a AFIA está a avaliar o impacto desta antecipação, já que o esforço feito para reduzir custos terá agora consequências na recolocação dos trabalhadores, num processo que poderá ser moroso.
Que impacto está a ter nas empresas vossas associadas a paragem da fábrica de Palmela, do grupo Volkswagen?
Contribuímos com poucos componentes para a Autoeuropa. Mas, no seu todo, serão à volta de 30 fabricantes que entregam direta e indiretamente componentes para o T-Roc [o modelo produzido] e, portanto, para a fabricação da Volkswagen. O impacto, mesmo assim, é significativo, porque a paragem da Autoeuropa determina também a paragem destes fornecedores – é uma situação em cadeia, um dominó. Temos desde empresas que vão parar a 100% a outras com um impacto na ordem dos 10% da sua produção. Estimamos que poderá haver cinco mil trabalhadores afetados. Não temos ainda a conta certa relativamente a trabalhadores que estavam contratados em regime de trabalho temporário porque, há um mês, a Volkswagen tinha uma expectativa de produção altíssima e, portanto, as empresas tiveram que contratar mais trabalhadores para responderem a essas necessidades, tiveram que lhes dar formação, capacitá-los para poderem trabalhar nas linhas. Mas todo este esforço, um mês antes, ruiu no final de agosto.
Avançou na imprensa que o impacto é importante, mas não é desastroso. O que significa?
Na AFIA temos dito várias vezes, e ao longo dos anos, que achamos que a Autoeuropa, que faturou no ano passado 3,7 mil milhões, é uma empresa de grande valor, tem no ranking das exportações portuguesas um lugar de grande relevo, mas as empresas portuguesas mereciam contribuir mais para a Autoeuropa. Portanto, quando eu digo que não é desastroso, é porque o efeito na produção, naquilo que é a atividade das 353 empresas que compõem o número de fabricantes de componentes nacional, isto terá um efeito estimado entre 1,8% e 2% na faturação. Por isso é que não é desastroso. Mas não é verdade que só a Autoeuropa tenha um efeito sobre as empresas. Como a indústria portuguesa fornece 98% dos automóveis fabricados na Europa, num ou mais componentes, isto significa que vamos ter um efeito também indireto pela paragem da fábrica que teve o desastre na Eslovénia. Poderá haver 250 veículos, marcas, e produtos a ser afetados por esta paragem. Portanto, vamos ter, mais tarde ou mais cedo, o reflexo em Portugal.
Isso tem um impacto enorme nas exportações também?
Tem um impacto enorme nas exportações, mais pelo lado da Autoeuropa, porque vai deixar de produzir entre 50 e 55 mil viaturas. O que significa que vamos deixar de exportar esses automóveis. Para a produção nacional, como eu disse, só a Autoeuropa, não estou a falar do resto da Europa, poderá ter um efeito de 1,8% ou 2%.
Falou há pouco dos 5 mil trabalhadores afetados, mas quando diz afetados, é pelo despedimento ou em condições de lay-off?
Não, essa é outra questão. Nove semanas [de paragem inicialmente previstas] ultrapassa o normal e, portanto, a primeira coisa que os empresários pensam é o que é que vamos fazer? Porque os custos de produção de dois meses parados são altíssimos e difíceis de integrar – põe em causa a atividade da empresa. A maior parte pensou logo no lay-off. E esta não é a solução ideal. O bom era poder fazer outras coisas com os trabalhadores e, nomeadamente, com os que contratámos há um mês, a quem demos formação, que estavam integrados neste momento, que fazem parte do processo já, e com os quais tivemos de rescindir contrato. E este é um trabalho que temos feito com o Ministério da Economia e com o Ministério do Trabalho, que se têm mostrado muito colaborativos na resolução, que é tentar encontrar uma solução para as empresas não entrarem em lay-off e não rescindirem contratos com os trabalhadores. Temos trabalhado em conjunto e têm aceitado discutir e participar em todo o processo.
As condições de lay-off aplicadas às várias empresas não são as mesmas…
Mas isso, no final, significa sempre paragem, não é? A indústria não pode perder essas pessoas, porque o investimento nelas, o nível de formação, de capacitação, é altíssimo. E se nós prescindimos delas, porque estamos a viver numa situação em Portugal de não termos mão-de-obra para várias atividades, nomeadamente para a indústria, rapidamente são integradas noutras indústrias e este é um prejuízo enorme.
E o Governo está a esse nível a apoiar…
O Governo tem-se mostrado disponível para ajudar, para encontrar soluções que possam apoiar as empresas, quer do ponto de vista de tesouraria, daquilo que é imediato. Para empresas que não vão trabalhar, que param mesmo, isto é um desastre. É que na indústria automóvel o investimento é uma forma de estar. Ninguém pode estar na indústria automóvel sem ter níveis de investimento altos.
Esse e outros assuntos vão estar em cima da mesa na reunião agendada para terça-feira com a ministra do Trabalho?
A prioridade é não perder trabalhadores. Segundo, temos de fazer face, do ponto de vista financeiro, a este desastre. Muitas empresas estão perante um problema grave, porque estão a pagar, por exemplo, despesas de investimento, mas também empréstimos que foram ajudas no tempo da covid e que estão neste momento a cair nas contas.
É possível aumentar a produção para compensar a paragem?
Acho que não haverá um aumento significativo. Repare que este é o automóvel estrela da Volkswagen, é o automóvel que mais vende e, portanto, estamos sempre no limite da produção.
E acha que teria sido possível evitar uma situação como esta? Ou de todo não seria possível?
A indústria automóvel tem um processo de verificação e de vigilância dos seus fornecedores muito competente. As indústrias de componentes, quer sejam fornecedores de primeira ou segunda linha, são sistematicamente vigiadas. São vigiadas como? Nas suas condições tecnológicas, manutenção, do ponto de vista financeiro. Agora, há uma coisa que é importante, é que isto é uma calamidade [as cheias que afetaram a fábrica do fornecedor esloveno]. É um evento que ninguém detetou.
Às vezes é pouco previsível antecipar a mitigação deste tipo de…
Mas vai haver mais, não é? Teremos de perceber que vai haver mais casos destes.
Os fabricantes portugueses para a indústria automóvel poderiam contribuir mais para a Europa? Teriam essa capacidade?
Nós dizemos isso há muitos anos. Os fabricantes de indústria automóvel têm uma característica importante: não param de procurar ser mais competitivos. O que é que isto traduz? Que o aumento da faturação e das exportações tem subido sempre. Nós temos crescido, até ao ano passado, mais ou menos a uma taxa média anual de 6%, quando a Europa não cresce em termos de veículos automóveis.
A Autoeuropa tem interesse que, no vosso caso, no universo de 350 empresas, possam contribuir mais para a produção?
Uma coisa é a Volkswagen, onde se decide, e outra é uma empresa instalada em Portugal. Isso faz parte do processo de organização da maior parte dos OEM [Fabricante Original do Equipamento, na designação em português]: há lugares de produção e há lugares onde se decide este tipo de coisa. Para integrarmos um processo de um produto, um automóvel, demora-se pelo menos três anos. Significa que se eu hoje pensar num automóvel, tenho um processo de três anos para integrar quais são os componentes e os fornecedores, onde vou comprar, onde não vou comprar. Portanto, dizer que vou entrar neste processo é de alguma complexidade.
Mas as empresas, no caso da Autoeuropa, são consultadas?
Em alguns casos são, mas em muito poucos. Esse trabalho foi feito pela AFIA para tentarmos perceber porquê. Uma das coisas que é importante é saber a razão para ficarmos de fora. Ninguém gosta de perder, não é? Se em vez de me comprar a mim, vão comprar ao meu vizinho, vou querer perceber porque é que o meu vizinho foi melhor do que eu. Este é um processo também de aprendizagem, de aprendermos a ser mais competitivos. Nalguns casos fomos preteridos por questões, provavelmente técnicas, noutros por questões de preço e noutros casos por questões de localização e de terem um conhecimento [prévio] sobre a empresa. Agora, nós estamos prontos para dar a conhecer o potencial que a indústria portuguesa tem, que estas empresas têm, darmos a conhecer esse potencial para podermos fazer parte do grupo de fornecedores que contribui.
Há também um desafio de futuro que já se vem assistindo em muitas fábricas, e a própria Autoeuropa também se está a preparar para isso, que tem a ver com a eletrificação do mundo automóvel. Têm discutido isso com a Autoeuropa, até como uma preocupação de poderem vir a ser fornecedores de novas peças e até nessa perspetiva do investimento e da formação que têm de dar a todas as empresas?
Nós não discutimos isso com a Autoeuropa. Nós apresentamos isso com humildade a todos os clientes. A parte da digitalização e da robotização é incontornável e, portanto, isso faz parte, é básico. Mas repare, este ano, as vendas da indústria automóvel de componentes em Portugal tem crescido 20%. Significa que estamos quer em novos modelos que estão a ser produzidos, quer nos antigos. Esta é uma discussão que fazemos todos os dias entre nós, porque quando o cliente vem ter connosco, não vem perguntar o que é que eu penso do futuro. Vem-me dizer assim: é capaz de fazer isto? E eu tenho de dizer que sou capaz e tenho competências internas para o fazer. Quer dizer, nós somos capazes de dizer que o futuro vai ter novas peças, com novas tecnologias, com novos materiais, que vai desde a estrutura ao software e nós somos capazes de produzir.
Há o perigo de, na espuma dos dias, a tecnologia substituir a mão-de-obra humana? Tem acautelado esta questão?
A intensidade de mão-de-obra é uma coisa que já abandonámos há algum tempo, porque se quisermos estar nas cadeias de valor neste processo, temos de vencer pela tecnologia, temos de ser competitivos a trazer a tecnologia. A questão é que temos 63 mil trabalhadores em 350 empresas na indústria automóvel e o nível de qualificação deles é muito mais alto do que o normal, porque há uma necessidade permanente de formação, de capacitação dos trabalhadores.
E há uma ameaça da fuga…
É evidente que se tivermos uma empresa ali ao lado que reconheça estas capacidades, provavelmente vem buscar pessoas. Portanto, esta necessidade da permanente formação é importante. E não se tem demonstrado que nós temos diminuído o número de trabalhadores. Há tarefas que serão substituídas, mas temos de criar também outras, outros trabalhos, outras necessidades internas para novos trabalhadores.
Tem falado frequentemente da questão da oportunidade. Acredita mesmo que todas as dificuldades geram oportunidades?
Acredito seriamente nisso. Nem é a palavra resiliência, mas a indústria automóvel tem demonstrado esta capacidade de se reinventar. Há bem pouco tempo eu estava muito preocupado em saber se tínhamos capacidade para estar no novo produto do automóvel. Saber se éramos capazes de responder aos desafios do novo produto. E o que é verdade é esta resposta do crescimento das exportações e das vendas em Portugal… no ano passado crescemos para 13 B [mil milhões de euros] de faturação. O que representou? Um aumento de 14% nas vendas. Foi um recorde. E este ano também estamos a crescer a dois dígitos.