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Dilema na UE. Como a China pode fazer Portugal perder até 91 mil empregos

Se o gigante asiático for considerado economia de mercado, desemprego pode ser devastador na Europa. Por isso, UE não quer dar-lhe esse estatuto

in Dinheiro Vivo, por Ilídia Pinto, 30-07-2016

A China é, ou não, uma economia de mercado? A pergunta é simples, mas os efeitos do sim ou do não são imensos e à escala global. Em risco, só na União Europeia, podem estar 1,7 a 3,5 milhões de empregos, dos quais mais de 90 mil em Portugal. Mas a questão terá de ser decidida, até ao final do ano, no seio da Organização Mundial do Comércio, cujas regras estabelecem que uma economia deve receber o estatuto de economia de mercado 15 anos após a adesão à OMC. O que acontece a 11 de dezembro de 2016. A União Europeia não está pelos ajustes: o Parlamento já assumiu formalmente ser contra e convidou a Comissão a agir; o Colégio de Comissários é mais prudente e defende que há que assegurar que a Europa dispõe de instrumentos de defesa comercial, mas dentro do respeito das suas obrigações no âmbito da OMC.

Na prática está tudo em aberto. Foram três os cenários em estudo pelo Colégio de Comissários – não alterar a legislação da UE; eliminar a China da lista de ‘economias centralizadas’ e aplicar a metodologia habitualmente utilizada nos cálculos de dumping; alterar a metodologia antidumping, optando por uma nova abordagem que permita manter um sistema de defesa comercial forte e, simultaneamente, dar execução às obrigações da UE -, sendo que a Comissão se compromete a apresentar uma proposta antes do final do ano. Angela Merkel já assumiu que a Alemanha está disposta a apoiar a reivindicação chinesa. E Portugal?

“A prioridade do Governo é pugnar para que os instrumentos de defesa comercial, nomeadamente o instrumento antidumping, permaneçam eficazes na correção das práticas de dumping nas importações, por forma a garantir condições de concorrência equitativas para todos os operadores económicos”, diz fonte do Ministério da Economia, sublinhando que “Portugal está empenhado em desenvolver todos os esforços necessários, no sentido de que a decisão que vier a ser adotada pela UE seja equilibrada”.

O gabinete de Caldeira Cabral sublinha que o défice comercial de bens e serviços de Portugal com a China tem vindo a diminuir progressivamente, sendo este já o 10º destino das exportações portuguesas e o oitavo fornecedor. “Não é, para já, possível prever com rigor qual a dimensão do impacto de uma eventual atribuição do estatuto de economia de mercado à China”, defende o ministério.

Mas o Instituto de Economia Política, EPI, think tank com sede em Washington, avançou já com um estudo, cujas conclusões variam consoante dois cenários, em que as exportações da China para a UE aumentariam 25% ou 50% no espaço de três a cinco anos, calculando uma perda 1,7 a 3,5 milhões de euros resultantes de uma redução da produção na Europa em 114 a 228 mil milhões de euros ao ano. E se é verdade que a Alemanha, a Itália, o Reino Unido e a França são os países com maior emprego em risco, em termos absolutos, Portugal está em sexto lugar em termos percentuais. É que os 45 700 a 91 400 postos que podemos perder correspondem, respetivamente, a 1,1 e a 2,1% do total do emprego nacional.

E embora as indústrias do aço, em que a China é hoje o maior produtor mundial, e dos painéis solares sejam aquelas que mais preocupam os responsáveis comunitários, a verdade é que o reconhecimento do estatuto de economia de mercado à China põe em risco entre 800 mil a 1,6 milhões de empregos na indústria, com especial destaque para os têxteis, vestuário e artigos de pele (187 mil a 374 mil), para a eletrónica e artigos óticos (144 mil a 288 mil) e a fileira da madeira e do mobiliário (108 mil a 217 mil).

Não é segredo que o setor dos têxteis e vestuário foi dos mais afetados com a adesão da China à OMC, que, em 15 anos, mais do que duplicou as suas quotas de exportações mundiais para 39% nos têxteis e 37% no vestuário. Um crescimento feito à custa dos restantes players mundiais, como Portugal. Em 15 anos, as importações europeias de têxteis e vestuário com origem na China aumentaram 283%. Só a Espanha, o principal parceiro e destino das exportações nacionais, importou mais 506% de artigos têxteis e de vestuário chineses. Pelo caminho ficaram duas mil empresas e quase 100 mil trabalhadores.

“Atividades de menor valor acrescentado acabaram por encerrar na impossibilidade de concorrer com a produção asiática, suportada por condições de trabalho, requisitos ambientais, fatores energéticos e apoios à indústria/economia não equiparáveis à realidade europeia”, destaca Ana Paula Dinis, responsável pelo departamento das relações internacionais na Associação Têxtil e Vestuário de Portugal (ATP). E acrescenta: “O dumping (a todos os níveis) e as subvenções são ainda uma realidade, mas muitas empresas optam por não apresentar queixa devido à morosidade, custo e complexidade dos processos. Os casos antidumping que têm avançado incidem sobretudo em matérias-primas (fios, fibras, tecidos) onde o índice de diferenciação é menos elevado.”

A ATP é frontalmente contra a concessão do estatuto de economia de mercado à China, considerando que esta questão não deveria ser “nem política nem uma medida automática”, mas antes sujeita a avaliação “técnica, rigorosa e periódica”. Em causa está o facto de a China ainda não cumprir os cinco critérios definidos pela OMC para ser considerada uma economia de mercado. “É uma questão de princípio e de cumprimento das regras”, diz.

Também a AIMMAP, a associação da indústria metalúrgica e metalomecânica, defende que a UE deve utilizar uma “metodologia excecional” nas investigações antidumping e antissubvenções relativas às importações chinesas. “A perda dos instrumentos que asseguram o comércio livre e justo com a China implicaria o desaparecimento de um número inaceitável de empregos, na ordem das dezenas de milhares”, afirma Gonçalo Lobo Xavier. Os setores mais afetados são, sobretudo, as ferragens, o alumínio, as bicicletas, os elétrodos, as ferroligas, os painéis solares, a cutelaria e a louça metálica, bem como o aço. “A existência de instrumentos de defesa comercial eficientes garante a lealdade da concorrência e são necessários para preservar o futuro da indústria europeia”, sublinha Lobo Xavier.

A indústria de cerâmica assume-se preocupada com a falta de uma posição clara por parte da Comissão Europeia nesta matéria. “É indispensável que a UE vincule a decisão sobre a forma como os direitos antidumping são calculados tendo como referência legal os critérios técnicos de economia de mercado da Europa, e não considerações políticas, mesmo após dezembro de 2016”, defende Sílvia Machado, da APICER. E sublinha que “o enfraquecimento dos instrumentos de defesa comercial da UE tornará a indústria europeia vulnerável ao excesso de capacidade da China, com consequências na perda de emprego e investimento”.

E se há setor que o entende são as cerâmicas, que conseguiu impor medidas antidumping às importações da China. Antes disso, perdeu empresas e emprego, mas com as medidas estabilizou a produção, conseguiu novos clientes e, sobretudo, recuperou antigos e criou novos postos de trabalho e oportunidades de investimento. “Os efeitos benéficos da imposição das medidas antidumping seriam ainda mais notórios se houvesse um controlo alfandegário eficaz, que combatesse a evasão das taxas”, diz Sílvia Marinho.

Também a indústria da pasta e do papel acredita que não estão reunidas as condições para a atribuição do estatuto de economia de mercado à China, já que tal impediria a Europa de “aplicar justificados mecanismos” de proteção antidumping. “Continuamos a assistir na China a um crescendo da capacidade instalada que, mesmo operando a baixas operating rates, conduz a sobreprodução, subsidiada e suportada pelo Estado, que não encontra colocação no mercado doméstico e que começa a chegar à Europa com franca perturbação do mercado”, refere Carlos Amaral Vieira, diretor geral da associação do setor, a CELPA. Os papéis de escritório e a indústria gráfica chineses são os que causam maior preocupação à indústria nacional, na medida em que “viajam, comparativamente, a menores custos”.

Na fileira da madeira não falta quem sofra com a concorrência chinesa, como o mobiliário, mas também quem tenha na China um grande mercado, como a indústria de painéis. E, por isso, Vítor Poças, acredita que o melhor é uma solução negociada. O presidente da AIMMP lembra os “investimentos fortíssimos” que a China tem na Europa, mas também os interesses que os grandes grupos europeus têm na China, para defender uma solução negociada. “Não há outra alternativa que não seja a de partir para negociações enquanto vamos a tempo de negociar alguma coisa a nosso favor, como uma pauta aduaneira que possa repor globalmente a diferença de custos de produção, com obrigações de convergência real ao longo de 10 ou 20 anos”, diz.

Já a Associação de Fabricantes para a Indústria Automóvel assume não dispor de estudos económicos que lhe permita “uma avaliação segura” dos possíveis impactos. Adolfo Silva, da direção da AFIA, reconhece que “nem sempre” a China tem pautado o seu comportamento “pelas mesmas regras que as economias de mercado e as indústrias, em particular, no mundo ocidental são obrigadas”, apontando situações de dumping, de concorrência desleal, de violação dos direitos de propriedade intelectual e de critérios “mais lassos” na proteção do ambiente, o que gera “significativas” diferenças concorrenciais.

“A China tem dimensão política, militar e económica para aplicar retaliações a quem entender, incluindo a UE, tanto mais que esta se apresenta politicamente fragilizada porque dividida. Por isso, e em caso de vir a existir um conflito económico entre os dois blocos, torna-se muito difícil antever o que poderão ser as retaliações e a sua extensão, logo, quais as suas consequências para a economia portuguesa e para a indústria de componentes automóveis”, frisa a AFIA.


SETORES MAIS AFETADOS:

 

  • Têxteis
    É dos poucos setores em Portugal que tem dados concretos para sustentar as suas críticas à concorrência agressiva e, muitas vezes desleal, da China. Com a liberalização do comércio, a indústria têxtil e vestuário perdeu duas mil empresas, 100 mil trabalhadores e quase dois mil milhões de volume de negócios. Começou a recuperar em 2009, mas ainda assim bem longe dos valores do início do milénio. Hoje dá emprego a 130 mil pessoas e produz 6,4 mil milhões de euros. Os casos antidumping que têm avançado incidem, sobretudo, em matérias-primas, onde o índice de diferenciação é menos elevado.
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  • Madeira e mobiliário
    A China é responsável por 35% da produção mundial de mobiliário, mas apenas por 30% do consumo. E 57,3% das importações europeias de mobiliário vêm da China. Mais, no caso português, estas mais do que duplicaram. A AIMMP reconhece que não se pode equiparar a China a uma economia de mercado, sem pré-condições, mas também reconhece que a única alternativa é negociar uma saída airosa para o que pode ser uma “guerra económica perdida pela Europa”. Com 4500 empresas, o mobiliário português exporta 2,3 mil milhões.
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  • Cerâmica
    São cem mil os postos de trabalho em risco na Europa, 12 mil em Portugal, garante a APICER, só nos subsetores dos ladrilhos e da louça de mesa. “Cerca de 80% das empresas são PME e estas seriam as primeiras a ser atingidas se a UE ficar vulnerável à China. Um número duas ou três vezes superior de empregos indiretos podem ser afetados se o sistema de defesa comercial da UE deixar de funcionar”, defende. Entre 2007 e 2011, Portugal perdeu 47 fábricas e 1800 empregos na louça de mesa. Os ladrilhos perderam 16% do número de postos de trabalho em cinco anos. Com vendas de 958 milhões, a cerâmica dá emprego a 16 mil pessoas e exporta para 158 países.
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  • Metalurgia
    A associação da metalurgia e metalomecânica admite que o ‘baixar da guarda’ relativamente à China levaria ao desaparecimento de “dezenas de milhar” de postos de trabalho. E embora reconheça que os setores que consomem produtos objeto de dumping (matérias-primas, por exemplo) poderiam beneficiar, a curto prazo, destas importações mais baratas, lembra que a China está a evoluir na cadeia de valor da produção. Mais tarde ou mais cedo a concorrência chega. Uma oportunidade, diz, para repensar modelos de negócios e apostar na indústria 4.0.

 


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