Escassez É uma espécie de novo normal na indústria automóvel. Todas as marcas anunciam lançamentos, mas depois não têm carros para entrega
in Expresso, por Vítor Andrade, 27-05-2022
Se está a pensar comprar um carro novo, para além da disponibilidade financeira, tem de contar com outra variável: a paciência.
Por outras palavras, tem de se conformar com a espera, que pode ser longa, em alguns casos superior a um ano. E mais: pode ter de se contentar com o que houver e não com aquilo que gostaria de ter. Ou seja, esqueça toda aquela gama de extras e opcionais que estava habituado a elencar junto do vendedor, que geralmente lhe ‘talhava’ o carro à sua medida, como no alfaiate.
O Expresso contactou várias marcas automóveis a operar no mercado nacional e todas foram unânimes num ponto: não há carros suficientes para satisfazer a procura, o que, regra geral, e tal como vem nos manuais de economia, numa situação de escassez se traduz em aumentos de preços, que em alguns casos podem já estar acima dos 10%. E podem não ficar por aqui.
Já é um lugar-comum dizer-se isto, mas “tudo depende do tempo de duração da guerra”.
E o que é que a guerra tem a ver com a vontade de comprar um carro novo? Praticamente tudo. Tanto a Rússia como a Ucrânia são grandes produtores de matérias-primas básicas, como o aço, mas também de alguns minerais utilizados, por exemplo, na construção de baterias para carros elétricos.
Se a sua opção for por um carro elétrico, a angústia da espera pode ser ainda maior.
GUERRA DESTRUIU O SECTOR DAS CABLAGENS NA UCRÂNIA
Sabe que, por exemplo, um carro elétrico precisa, em média, de cinco quilómetros de cablagens? E sabe que a Ucrânia é um dos principais produtores de cablagens para automóveis da Europa [algo em que Portugal já foi particularmente competitivo no passado recente]? A guerra não apenas encerrou muitas das fábricas ucranianas de cablagens como fez com que inúmeros pequenos e médios fornecedores dessas fábricas também ficassem impedidos de produzir.
Mas não é tudo. A guerra destruiu praticamente toda a rede logística de abastecimento e distribuição da produção daquele país. No caso da Rússia, com as sanções impostas pelo Ocidente, as suas matérias-primas também deixaram de chegar à indústria automóvel europeia.
A tempestade já não é apenas perfeita. Agora é mais que perfeita, e pode estar para durar. José Couto, presidente da Associação de Fabricantes para a Indústria Automóvel (AFIA), disse ao Expresso que, “mesmo que a guerra na Ucrânia terminasse hoje, seriam precisos pelo menos oito meses para recuperar o sector”.
E somam-se já as previsões do que poderá estar para vir, com um relatório recente da consultora Auto Forecast Solutions a admitir que este ano 1,25 milhões de veículos automóveis deixarão de ser fabricados por falta de semicondutores no mercado mundial.
Hugo Barbosa, diretor de Comunicação da Renault, diz que ainda há poucos dias esteve numa fábrica do grupo, em França, que em vez de produzir os 500 carros diários habituais está apenas nos 100. Assume que “estamos a produzir menos e a entregar menos”. E, garante, “há várias marcas que deixaram de incluir, por exemplo, ecrãs táteis no tablier dos seus modelos e outras já não têm sequer elevadores automáticos para os vidros das janelas ou regulação automática para os retrovisores”.
O responsável da Renault assegura que “as campanhas de descontos acabaram e os preços não param de subir. Aliás, não deixa de ser frustrante o cliente chegar ao stand para fazer a segunda compra mais importante da sua vida [depois da casa] e não ter ninguém que lhe garanta nem o produto que quer e muito menos o preço, que varia desde a encomenda até ao momento da entrega”.
A propósito da escassez destes componentes, Helder Pedro, secretário-geral da Associação Automóvel de Portugal (ACAP), reconhece que a situação — que já era complicada antes da guerra — está agora a começar a ficar insustentável, o que levou já a União Europeia a declarar que em 2030 quer tornar-se autossuficiente naquela matéria.
EUROPA RESPONDE À FALTA DE SEMICONDUTORES COM O CHIPS ACT
E foi nesse sentido que surgiu em fevereiro — ainda antes de a guerra ter rebentado na Ucrânia — a intenção da Comissão Europeia em criar o Chips Act, um conjunto de investimentos, que deverão rondar os €43 mil milhões, com base nos quais a Europa se propõe apostar em tecnologias de última geração para que se atinja a autossuficiência em matéria de semicondutores para a indústria.
Ironia do destino ou talvez não, esta sucessão de constrangimentos na cadeia de abastecimento está a deixar o sector à beira de um ataque de nervos, pois acontece precisamente no momento em que todas as marcas automóveis mundiais anunciam pacotes de investimentos [na eletrificação dos seus carros] da ordem de milhares de milhões de euros cada. Ou seja, todas as grandes construtoras precisam urgentemente de matérias-primas e componentes de elevado valor acrescentado tecnológico, mas a realidade está a dizer-lhes precisamente o contrário. Vivemos tempos de escassez.
Há poucos dias, durante a apresentação de mais um modelo elétrico de luxo construído de raiz (e não baseado em nenhum dos preexistentes), Holger Marquardt, presidente executivo da Mercedes-Benz Portugal, fazia questão de sublinhar que até 2026 a construtora germânica irá investir mais de €60 mil milhões na mudança de paradigma para a mobilidade elétrica.
A Stellantis [que engloba a Peugeot, a Citroën e outras 12 marcas], liderada pelo português Carlos Tavares, também anunciou recentemente investimentos de €30 mil milhões na eletrificação. E a Volkswagen bateu todos os recordes ao tornar pública a sua intenção de investir €89 mil milhões na transição para a mobilidade elétrica, assumindo que ambiciona a liderança neste domínio até 2025.
Agora mais cauteloso, Herbert Diess, presidente executivo da Volkswagen, disse mesmo — num debate sobre “O Futuro do Carro”, organizado há pouco mais de uma semana pelo “Financial Times” — que “muitas pessoas parecem estar demasiado otimistas”. E, prosseguiu, “a verdade é que precisamos de energia, de redes de carregamento, de carros, mas também de baterias e de matérias-primas”.
MUSK ADMITE ENTRAR NA EXPLORAÇÃO MINEIRA PARA GARANTIR LÍTIO
Esta constatação já levou Elon Musk, o líder da Tesla, a admitir entrar no negócio da mineração para garantir um acesso mais direto ao lítio, a partir do qual se constroem as baterias para os carros elétricos.
Musk, que também esteve presente no evento do “Financial Times”, colocou mesmo em dúvida a capacidade da sua empresa em atingir a meta — implementada há apenas alguns meses — de conseguir a marca dos 20 milhões de carros elétricos por ano até ao final da década. “Podemos tropeçar e não atingir esse objetivo”, disse Musk, que raramente é olhado como conservador. E adiantou ainda que “há algumas restrições nas matérias-primas, sobretudo na produção de lítio e também na produção de cátodos, ao longo dos próximos três anos”.
Na verdade, são já vários os analistas a alertar para a escassez de baterias e para o facto de as disponibilidades poderem não ser suficientes para que os vários fabricantes de automóveis consigam cumprir com as metas que têm vindo a anunciar. Outra das consequências é o praticamente inevitável aumento dos preços dos carros elétricos, que, já agora, são considerados inacessíveis a muitas famílias, como avançou ao Expresso um dirigente associativo do sector que tem acompanhado a evolução do mercado.
Tal como se fez na transição das energias fósseis para as renováveis, no caso português “tem de ser o Estado, numa primeira fase da introdução de uma nova tecnologia, a subsidiar os sobrecustos, até se atingir alguma escala que, numa fase seguinte, faça com que seja o próprio mercado a baixar os preços”, explica ao Expresso um investigador universitário da área dos transportes.
E, segundo Helder Pedro, secretário-geral da ACAP, “o Estado português, em vez de aumentar os subsídios à compra de carros elétricos, mantém tudo inalterado, na casa dos €3 mil por unidade, quando em países como a Roménia, por exemplo, o subsídio chega aos €10 mil”. O que é que isso significa? “É muito simples. Portugal está a ficar para trás na transição para a mobilidade elétrica”, sublinha o mesmo responsável.
Mas o que é curioso é que — caso o leitor veja televisão com alguma frequência — são várias as marcas que continuam a anunciar novos modelos, com uma cadência praticamente imune às circunstâncias da escassez. Mas isso só está a acontecer, segundo Nuno Costa, diretor de Marketing da Porsche Ibérica, “porque eram campanhas que já estavam contratadas antes do início da guerra e dos efeitos desta no fornecimento de componentes e matérias-primas”.
Nuno Costa recorda que, por causa da guerra, a fábrica da Porsche em Estugarda, na Alemanha, teve de fechar três semanas por falta de componentes, e com isso deixou de produzir os habituais 1200 automóveis diários, com prejuízos de “muitos milhões”. E, por causa da escassez, nota ainda que “agora temos sete clientes para cada carro e são vendidos praticamente ‘em leilão’”.
QUATRO PERGUNTAS A
José Couto
Presidente da Associação de Fabricantes para a Indústria Automóvel (AFIA)
De que forma os efeitos da guerra afetaram o sector?
- Muitas das empresas portuguesas foram confrontadas com encerramentos abruptos de fábricas de alguns clientes seus durante sete semanas seguidas, o que complicou seriamente toda a logística e toda a forma de organização e gestão. No mercado já faltavam semicondutores e componentes eletrónicos — situação que se agravou com a guerra, pois muitas unidades industriais situam-se na Ucrânia —, mas a isso as empresas passaram ainda a ter de associar os aumentos sucessivos dos preços da energia e de algumas matérias–primas (em certos casos com agravamentos de mais de 300% no espaço de poucos meses).
O agravamento dos custos de produção vai ser repercutido nos clientes?
- Até agora, as empresas têm estado a fazer um esforço enorme para não passar para os clientes o impacto do agravamento dos fatores de produção. Muitas têm estado a absorver esse impacto, tendo como consequência a redução das suas margens financeiras. Resta saber até quando elas poderão continuar a suportar esse esforço. E, atenção, que muitas conseguiram fazer isso porque lograram consolidar uma estrutura económica e financeira sólida. Mas agora há ainda que contar com mais três variáveis: o encarecimento dos custos logísticos, o aumento das taxas de juro e a subida da inflação.
A Ucrânia é um dos grandes produtores de cablagens para automóveis. Portugal não consegue competir neste domínio?
- Na verdade, Portugal já foi competitivo neste sector, mas, nas últimas duas décadas, muita da produção foi deslocalizada, nomeadamente para alguns países do Norte de África. É evidente que agora não é de um dia para o outro que se põe de pé um cluster na área das cablagens, e, assim que a guerra termine, seguramente que a Ucrânia vai continuar a liderar nesta área, que é de uma importância extrema para os carros elétricos. Cada um precisa, em média, de cinco quilómetros de cablagens. E uma coisa é certa: se a indústria portuguesa não se posicionar agora neste processo gigantesco [já em curso na transição para a mobilidade elétrica] de fornecimento de componentes às grandes marcas, ficará irremediavelmente para trás.
Qual vai ser o maior desafio para as empresas portuguesas deste sector?
- Neste contexto de quebras de encomendas e de falta de matérias-primas, o grande desafio vai ser a manutenção da capacidade de produção. É preciso não desinvestir na inovação, por exemplo, mas também não se pode desistir da mão de obra que agora não está a ser precisa. Só que isso tem custos elevados. E, provavelmente, não seria descabido voltarmos a ter um regime de lay-off simplificado, pelo menos até retomarmos dos efeitos da guerra.