Protecionismo americano começa a agitar empresários portugueses
Fabricantes de componentes automóveis temem que o programa norte-americano IRA (Inflation Reduction Act) dite uma redução das exportações para os EUA. CIP diz que alívio de ajudas de Estado não chega: é preciso um fundo europeu de apoio à reindustrialização
in Expresso, por Isabel Miranda, 30-01-2023
O ministro da Economia, António Costa Silva, garantiu ao Expresso que já há empresas estrangeiras a suspender investimentos em Portugal, seduzidas pelos generosos incentivos que os Estados Unidos da América (EUA) estão a oferecer a quem produza no seu território, com matéria-prima local, e entre os empresários portugueses o tema já está no radar. Receando perder quota de exportações para os EUA, pedem ao Governo que se bata na Europa por uma política de reindustrialização robusta – mas sem afrontar os norte-americanos.
Um dos setores potencialmente mais afetados com a nova vaga da política “America First”, é o automóvel. Até agora, a AFIA (Associação de Fabricantes para a Indústria Automóvel) não recebeu notícias tão alarmantes quanto as que já chegaram a António Costa Silva, mas a preocupação do ministro da Economia (para quem esta é uma questão “urgente, muito urgente”) não é negligenciada.
José Couto, presidente da associação, diz ao Expresso que “o programa pode significar uma quebra de investimentos na Europa, com as empresas a relocalizarem os seus investimentos” e, mais ainda, pode ser uma machadada na quota de mercado exportadora que as empresas nacionais conquistaram. Os EUA já são “o quarto ou quinto país para onde mais exportamos componentes”, “isto pode constituir um bloqueio”, admite o dirigente.
Os EUA já são o quarto ou quinto país para onde mais exportamos componentes. O IRA pode constituir um bloqueio, admite José Couto, da AFIA
Do lado da CIP – Confederação Empresarial de Portugal, a análise é semelhante. “A deslocalização é um risco. Pode haver uma corrida aos subsídios [dos EUA], que têm elementos claramente discriminatórios”, aponta ao Expresso o economista Pedro Capucho, coordenador do departamento de assuntos económicos da CIP.
O pacote de apoios norte-americanos agita há meses a política e a diplomacia europeias. O presidente francês, Emmanuel Macron, e o chanceler alemão, Olaf Scholz, já alinharam argumentos, já intercederam diretamente junto de Joe Biden, mas, até agora, o único consenso europeu é que os incentivos americanos violam regras internacionais da concorrência e arriscam-se a promover um êxodo de empresas para o outro lado do Atlântico. Já quanto aos meios de resposta da União Europeia, há dificuldades de alinhamento, com evidentes divisões entre Estados-membros e comissários europeus.
“A deslocalização é um risco. Pode haver uma corrida aos subsídios [dos EUA], que têm elementos claramente discriminatórios”, admite Pedro Capucho, economista na CIP
EUROPA DIVIDIDA
Há duas semanas, em Davos, a escalada do protecionismo esteve na agenda, e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, aproveitou para anunciar as propostas que no próximo dia 6 de fevereiro, estarão em debate no Conselho Europeu.
Através do “Net-Zero Industry Act” a Comissão Europeia propõe uma flexibilização temporária das regras de ajudas de Estado, para permitir que os 27 subsidiem as suas indústrias verdes. Esta iniciativa garante ainda a remoção de obstáculos burocráticos para investimentos nas áreas da energia fotovoltaica e eólica, bombas de calor, armazenamento de energia e eletrolisadores – os chamados “negócios verdes” – e, segundo avança esta segunda-feira o Financial Times, permite aos Estados avançarem com benefícios fiscais específicos a estes negócios. A isto, von der Leyen quer somar um “Fundo Europeu de Soberania”, de onde sairiam verbas necessárias para promover investimentos dentro do espaço europeu.
Embora os contornos dos projetos ainda não sejam claros, já têm oponentes. Este fim-de-semana, Áustria, Chéquia, Dinamarca, Eslováquia, Estónia, Finlândia e Irlanda enviaram uma carta ao comissário europeu Valdis Dombrovskis, manifestando veemente oposição a este fundo.
Antes deles, já Alemanha, Bélgica e Países Baixos tinham vindo a terreiro afastar a possibilidade de a União Europeia fazer novas emissões de dívida para financiar empréstimos ou subsidiação direta às empresas. Os países, alinhados com o comissário letão, consideram que os princípios do livre comércio devem ser, no essencial, preservados. A União Europeia já tem instrumentos de financiamento suficientes, e o custo da dívida europeia, que já está a subir, agravar-se-ia mais, argumentam.
Se não forem convencidos pelos parceiros europeus, o Fundo Europeu de Soberania – o “fundo para a reindustrialização” que António Costa Silva considera indispensável e urgente – morrerá antes de nascer.
PROTEGER A EUROPA SEM AFRONTAR OS EUA: A QUADRATURA DO CÍRCULO?
Em Portugal, os empresários pedem uma resposta europeia rápida e firme mas, de preferência, sem desafiar os EUA.
“Quando assistimos a uma fragmentação em termos internacionais, faria sentido que o ocidente, Europa e EUA, se unissem mais”, pelo que, “em primeira linha, achamos que seria de privilegiar uma negociação com os Estados Unidos”, diz Pedro Capucho, economista da CIP.
Rui Miguel Nabeiro, presidente da Confederação de Comércio e Indústria Portuguesa (CCIP), está alinhado nesta preocupação. “Qualquer resposta europeia que promova o conflito com os Estados Unidos será naturalmente negativa e com consequências muito graves, que vão levar ao empobrecimento das economias europeias”, considera o empresário. Esta preocupação terá, contudo, de ser conjugada com “a necessidade imperiosa de a União Europeia agir rapidamente, sob pena de o US Inflation Reduction Act começar a afetar negativamente o mercado europeu”, acrescenta Rui Nabeiro.
“Qualquer resposta europeia que promova o conflito com os Estados Unidos será naturalmente negativa e com consequências muito graves”, diz Rui Miguel Nabeiro, da CCIP
Que resposta seria essa? Para a CIP é fundamental que a União Europeia não se fique pela flexibilização adicional das ajudas de Estado, que acaba por ser aproveitada pelos países com maior envergadura orçamental.
Estatísticas recentes mostram que o mais recente processo de flexibilização de ajudas de Estado, para fazer face à guerra na Ucrânia, foi aproveitado sobretudo pela Alemanha e França. Os dois países injetaram nas suas economias 77% dos 672 mil milhões de euros autorizados por Bruxelas, o que, diz Pedro Capucho, apenas cria “distorções dentro do próprio mercado interno”. Para a CIP, a solução deve passar pelo “reforço do financiamento a nível europeu, através do chamado Fundo Soberano”, o fundo a que o ministro da economia chama “fundo de reindustrialização” mas que merece fortes resistências por parte dos países do centro e norte da Europa.
José Couto, da AFIA, considera igualmente que “Portugal tem de posicionar-se para conseguir manter e reforçar o investimento das empresas cá”. “Não somos defensores do protecionismo, mas não podemos ser parvos. Não podemos ter uma política frouxa”, diz o empresário, que sugere que se revisite todas as regras europeias limitativas ao investimento, como as ambientais.
“Não somos defensores do protecionismo, mas não podemos ser parvos”, diz José Couto
O NOVO “AMERICA FIRST”
Na origem da escalada de tensão entre os blocos económicos estão dois pacotes de apoios lançados pelos EUA: a Lei de Redução da Inflação (IRA) e a Lei Chips (Creation Helpful Incentives to Produce Semiconductors Act) que os críticos consideram violar acordos multilaterais e as regras fixadas na Organização Mundial de Comércio.
Os planos de incentivo contemplam isenções e benefícios fiscais, empréstimos e subsídios diretos que, no seu conjunto, somam 440 mil milhões de dólares em apoios públicos (404 mil milhões de euros, quase o dobro do PIB português num ano). E dirigem-se sobretudo à “economia verde”, abrangendo projetos de produção de combustível alternativo, veículos elétricos, respetiva infraestrutura, hidrogénio, energias nuclear, solar (painéis solares), eólica (turbinas), biomassa e hidroelétrica, e semicondutores. O objetivo é reorganizar a cadeia de produção, de modo a que as empresas invistam nos EUA, comprem matérias-primas predominantemente norte-americanas e produzam nos EUA. Os consumidores também têm reservado um apoio até 7500 dólares para compra de um carro elétrico produzido internamente.
A União Europeia considera que estes incentivos aprofundam a política protecionista de Donald Trump, são discriminatórios, distorcem a concorrência e ameaçam desviar investimento do continente para o outro lado do Atlântico, e desde o final do ano passado que se movem influências. “Temos de dizer claramente aos nossos parceiros norte-americanos que isto é um grande problema para nós. Não é aceitável. Pode criar um grande choque na indústria europeia” lançou Bruno Le Maire, ministro das Finanças de França, um dos países que mais se têm mobilizado para uma robusta resposta europeia. Em dezembro, Emmanuel Macron foi à Casa Branca convencer Joe Biden a moderar as propostas legislativas, mas em vão.
Na semana passada, em Davos, o tema não escapou à agenda e, segundo a imprensa internacional, agitou o ambiente. Joe Manchin, democrata da Virgínia Ocidental, e tido como um dos arquitetos da solução americana, terá sido confrontado por políticos e diplomatas europeus mas não se demoveu. Ao jornal Politico diz ter garantido que “esta legislação não foi concebida para prejudicar ninguém. O objetivo é uma América forte para que pudéssemos ajudar os nossos amigos. É isso”. A história segue dentro de momentos.
David Mcnew/Getty Images