Veículos elétricos e do seu impacto na rede
in Expresso, por Miguel Prado, 21-04-2023
As vendas de carros elétricos em Portugal seguem de vento em popa: no primeiro trimestre foram comercializados 9188 automóveis 100% elétricos, mais do dobro do registo no mesmo período do ano passado. Março teve um novo recorde para este tipo de veículos, que representam agora cerca de 16% das vendas de carros no país. Os automóveis 100% elétricos estão ainda longe de uma posição dominante no parque automóvel: serão menos de 100 mil entre os 5,6 milhões de viaturas em circulação. Mas as perspetivas de aceleração da mobilidade elétrica existem. E se se confirmarem trarão vários desafios. Um deles é fiscal: como irá o Estado compensar a perda de receita com os impostos associados aos veículos com motores de combustão? Mas outro, não menos importante, tem que ver com a infraestrutura necessária para suportar esta expansão: irá a rede aguentar?
Numa apresentação feita a 13 de abril numa conferência promovida pelo regulador da energia, Rui Gonçalves, da E-Redes, chamava a atenção para a necessidade de reforço da rede de distribuição em Portugal no quadro da transição energética e, em particular, da crescente adesão à mobilidade elétrica. O responsável da E-Redes notou que só em pontos de carregamento públicos Portugal poderá precisar de instalar cerca de 1,5 gigawatts (GW) adicionais de nova potência até 2030, sendo que para alimentar a procura adicional por pontos de consumo domésticos poderá ser preciso outro tanto. Ou seja, em menos de uma década, potencialmente mais 3 GW na rede de distribuição.
Desenhar e preparar a rede para o futuro não será fácil. Por um lado pela pulverização da mobilidade elétrica enquanto forma de consumo: a cada mês que passa são alguns milhares de portugueses que trocam o seu veículo com motor de combustão por um elétrico, de Norte a Sul do país, do interior ao litoral. Por outro lado, porque é ainda incerto o ritmo de crescimento que teremos a cada ano. Poderá dar-se o caso de em alguns pontos do território a adesão à mobilidade elétrica ser particularmente acelerada, enfrentando, do lado do gestor da rede de distribuição, um processo mais lento para reforço das infraestruturas. Um desafio que sugere uma necessidade mais premente de dotar de flexibilidade o sistema elétrico de amanhã.
Na mais recente atualização do Plano de Desenvolvimento e Investimento da Rede de Distribuição (PDIRD), para o período de 2023 a 2025, a E-Redes estimou que em 2021 os veículos elétricos em Portugal terão consumido 210,7 gigawatt hora (GWh), menos de 0,5% do consumo anual de eletricidade no país. A E-Redes também traçou uma previsão para a evolução da procura, contando com as projeções que a Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) inscreveu no seu último RMSA – Relatório de Monitorização da Segurança de Abastecimento.
De acordo com a DGEG, Portugal deverá passar de 64 mil veículos 100% elétricos em 2022 para 87 mil no corrente ano e 115 mil no próximo, numa trajetória que chegará aos 551 mil no ano 2030. Contudo, se lhes juntarmos os híbridos e também ligeiros de mercadorias elétricos, então o país poderá ter perto de 800 mil carros a precisar da rede no final desta década. Mas este é o cenário conservador. No cenário ambição o RMSA coloca o parque nos 1,7 milhões de veículos, dos quais 937 mil ligeiros de passageiros 100% elétricos, 313 mil ligeiros de mercadorias e 450 mil híbridos.
As projeções são relevantes enquanto exercício para calcular as necessidades futuras de energia da mobilidade elétrica. O trabalho da DGEG, aliás, também admite que em 2030 Portugal tenha mais de 400 autocarros elétricos e mais de 300 camiões com este tipo de motorização, bem como uma dezena de navios fluviais alimentados com eletricidade. E a conclusão que se pode tirar é que do ponto de vista da energia o consumo dos veículos elétricos em 2030 poderá situar-se entre os 2 terawatt hora (TWh) no cenário conservador e os 4,5 TWh no cenário de ambição. É o equivalente a 4% a 9% do consumo anual de eletricidade que Portugal regista hoje em dia.
Há que considerar, todavia, que mesmo a projeção mais ambiciosa da DGEG para 2030 apenas representa uma eletrificação de cerca de um terço do parque automóvel atual, pelo que uma maior penetração da mobilidade elétrica exigirá um maior volume de energia.
A avalancha de projetos de energias renováveis que têm surgido em Portugal, das grandes centrais solares ao reforço dos parques eólicos, passando pelos projetos offshore, sugere que não será problema gerar eletricidade adicional para suprir o acréscimo de procura da mobilidade elétrica. Mas mais complexa será a resposta da rede a este novo tipo de consumo, mais móvel e volátil do que a procura que desde sempre orientou a construção de redes, com entrega física da energia em pontos fixos de consumo doméstico e industrial, com um perfil de procura razoavelmente previsível.
No PDIRD a E-Redes projeta que em 2027 (o seu plano não chega a 2030) o consumo expectável dos carros elétricos se distribua de forma relativamente equilibrada entre os vários níveis de tensão: 309 GWh na baixa tensão normal, 326 GWh na baixa tensão especial e 395 GWh na média tensão.
A E-Redes assume, por exemplo, que nos elétricos ligeiros 69% do carregamento será doméstico, 21% no local de trabalho e 10% na rede pública, socorrendo-se de um trabalho feito pelo instituto INESC TEC sobre o impacto da integração na rede de veículos elétricos. Aquela repartição da procura é a mesma que a empresa usava em 2020, no plano de investimento então apresentado, ainda quando se designava EDP Distribuição.
Todavia, são muitas as incógnitas sobre como efetivamente se concretizará a expansão da procura de carros elétricos. Em que concelhos? Com que características em termos de motores? Com que comportamentos e opções do ponto de vista do utilizador do veículo? Quão diversas serão as opções tarifárias? E quão flexível será a procura?
Um outro trabalho que acaba de ser publicado pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL) acrescenta mais complexidade a este debate. Trata-se do ensaio intitulado “The Transition – Why we need battery swapping for the future energy and transport systems”, da autoria de António Vallêra, investigador que se tem debruçado sobre a energia solar e a descarbonização da energia e dos transportes.
O trabalho de António Vallêra (que pode ser lido aqui) analisa várias modalidades de transporte rodoviário, incluindo os motores de combustão, o hidrogénio, os veículos com carregamento plug-in e o modelo de troca de baterias. E segundo o investigador da FCUL, será este último o mais interessante de explorar, proporcionando benefícios não apenas para os proprietários de veículos elétricos mas também para a rede.
Vallêra nota, por exemplo, que num cenário de total eletrificação do parque automóvel português o país passaria a ter uma potência sobre rodas de 560 GW (assumindo um parque de 7 milhões de viaturas e motores com 80 kilowatts). Seria 100 vezes a carga média da rede elétrica em Portugal atualmente. Não só os automóveis elétricos poderiam absorver facilmente excedentes da rede elétrica num dado momento, como também poderiam devolver energia à rede em situações de crise.
No entanto, defende o mesmo investigador, o conceito V2G (vehicle-to-grid) não funciona: deixar o carro ligado à rede durante períodos prolongados para a eventualidade de poder prestar serviços ao sistema elétrico (adquirindo excedentes ou fornecendo a sua energia) contribuiria para uma degradação da bateria, que no final de contas poderia sair mais cara do que as receitas que o utilizador teria com esse tipo de serviço de flexibilidade para a rede elétrica.
Partindo desta premissa, António Vallêra defende que poderá ser mais vantajoso deixar o clássico modelo de carregamento da bateria pelo utilizador (seja em casa ou no trabalho), para adotar um modelo de troca de baterias, com estações de substituição espalhadas pelo território (como hoje existem bombas de gasolina e gasóleo), que teriam os equipamentos carregados prontos a colocar no automóvel, ficando com as baterias descarregadas para “reabastecimento”.
Estas redes de troca conseguiriam fazer um carregamento lento de um grande número de baterias, aproveitando sobretudo as horas em que os preços grossistas da eletricidade são mais baixos. E a rede elétrica poderia contar com estas estações de baterias como cargas flexíveis para ajudar a gerir o equilíbrio entre a oferta e a procura a cada minuto. O facto de as baterias serem carregadas num ambiente controlado também poderá contribuir para reduzir a sua degradação.
António Vallêra reconhece, no seu ensaio, que experiências do passado com modelos de troca de baterias, como os da Tesla e da Renault, mostraram que “o modelo de negócio estava errado, e na hora errada”. Mas o investigador considera que a solução da substituição de baterias (em detrimento dos carregamentos a cargo do utilizador) é exequível, dando como exemplo a experiência da fabricante chinesa NIO, que já instalou 800 estações de troca, com vários milhões de operações de substituição.
Mas o custo desta infraestrutura é uma incógnita. Se a NIO aponta para meio milhão de dólares por estação, António Vallêra admite que o custo de reconverter um posto de combustíveis para um ponto de troca de baterias poderá ascender aos 4 milhões de euros. No seu ensaio, projeta uma logística bem oleada e automatizada, que permitiria trocar a bateria de um carro em apenas um minuto. Mas cada estação poderia precisar de uma capacidade de ligação à rede de 10 MW.
No estudo realizado, o investigador conclui que o modelo de troca de baterias “apresenta o mais baixo custo total anual para veículos ligeiros”, com os carros com motores de combustão a sair 12% mais caros, os carros a hidrogénio 14% mais caros e os plug-in 9% mais caros. A vantagem do modelo de substituição de baterias será ainda maior nos camiões.
E uma outra conclusão do mesmo trabalho é que do ponto de vista da gestão do sistema elétrico será possível otimizar o equilíbrio da rede conjugando a flexibilidade de curta duração das estações de troca de baterias e a flexibilidade de períodos mais longos das centrais hidroelétricas com bombagem.
O tema da flexibilidade será crítico no planeamento energético e na gestão da descarbonização. No mais recente relatório de monitorização de segurança de abastecimento do sistema de gás natural, acabado de aprovar pelo Governo, e que explicamos aqui no Expresso, a Direção-Geral de Energia e Geologia chama a atenção para a necessidade de gestão integrada dos sistemas de eletricidade e de gás, e sugere a criação de um regime de interruptibilidade para as centrais de ciclo combinado de Lares e da Tapada do Outeiro, como forma de acudir a situações críticas no abastecimento de gás natural.
No que respeita à mobilidade elétrica, a flexibilidade é um ponto crítico, porque não só a rede tem de estar preparada para responder a necessidades de carga muito variáveis (do mesmo modo que os postos de combustíveis não recebem todos os automobilistas ao mesmo dia e à mesma hora), como o mercado terá de se adaptar e facilitar a adesão, por parte dos utilizadores, a tarifas dinâmicas (bem mais dinâmicas do que as opções bi-horárias que há anos existem em Portugal). Os 50 milhões de euros que o PRR canalizará, na sua versão revista, para a flexibilidade do sistema elétrico sinalizam a importância do tema no planeamento energético.
A resposta à pergunta sobre se a rede elétrica do futuro aguentará a massificação dos carros com baterias é tudo menos simples, sobretudo se considerarmos que não só a gestão da rede amanhã será diferente da de hoje, fruto da digitalização e de um maior peso da produção descentralizada, como também a procura será distinta. É um setor em permanente transformação. Em 2009 o INESC, da Universidade do Porto, iniciava a sua participação no projeto Merge, destinado a estudar o impacto dos carros elétricos nas redes europeias. O projeto surgia num quadro em que se acreditava que o carregamento dos carros elétricos seria feito principalmente à noite, com maior disponibilidade de energia barata, a partir, por exemplo, da abundância de produção eólica. Mas entretanto o mundo mudou. A energia solar tornou-se mais barata. As centrais fotovoltaicas de larga escala foram crescendo como cogumelos e a sua forte produção tem feito afundar os preços grossistas da eletricidade durante o dia e não de noite.
Ao mesmo tempo, também a tecnologia de armazenamento está a evoluir. Nos últmos dias a chinesa CATL, maior fabricante mundial de baterias, fez um duplo anúncio: primeiro, apresentou a sua primeira aposta em baterias de iões de sódio para carros elétricos (um passo que, se bem sucedido, acrescentará uma alternativa ao lítio); depois lançou uma bateria condensada, com uma densidade de até 0,5 kWh por quilo (mais do dobro do registo das baterias de alguns dos modelos mais comuns de carros elétricos). Embora esta bateria mais densa tenha sido apresentada esta quinta-feira na Auto Shanghai, a CATL promoveu-a como uma oportunidade de apostar na eletrificação dos aviões de passageiros. E como se tudo isto não bastasse, outros fatores de incerteza alimentarão a dúvida nos próximos anos. Irão os combustíveis sintéticos ser bem sucedidos enquanto alternativa à eletrificação, prolongando a era dos veículos com motores de combustão, mas agora numa versão menos poluente?
Não há respostas fáceis. Mas a necessidade de descarbonização dos nossos consumos e o aperfeiçoamento dos modelos de negócio para as várias soluções em cima da mesa encarregar-se-ão de esclarecer se a transição energética correrá sobre rodas.
DESCODIFICANDO:
V2G. A expressão “Vehicle to Grid” designa a capacidade de os automóveis não apenas consumirem energia da rede elétrica, mas também alimentarem a rede com a própria energia que têm armazenada nas suas baterias, num sistema bidirecional. Há diversos testes desta solução pelo mundo fora, com o conceito a assentar na ideia do carro elétrico como um prestador de serviços à rede, pois a disponibilidade desses veículos para em momentos críticos fornecerem por alguns instantes a sua carga à rede elétrica poderá ajudar os gestores da rede de distribuição a gerir eventuais desequilíbrios momentâneos em determinados locais.
E VALE A PENA LER:
Se tem interesse pela forma como gerimos a longo prazo as nossas infra-estruturas de energia, vale a pena espreitar a última edição do “Relatório de Monitorização da Segurança de Abastecimento do Sistema Nacional de Gás Natural”, que pode ser consultado aqui na página da Direção Geral de Energia e Geologia, e que tem informação muito detalhada sobre as perspetivas de evolução da procura de gás em Portugal e de desenvolvimento das infra-estruturas. Um tema especialmente relevante quando se sabe que a transição energética é isso mesmo: uma transição que levará o seu tempo e que ainda requer, por alguns anos, o recurso aos combustíveis fósseis, e não uma mudança repentina.