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Entrevista a Carlos Tavares

“Se não querem automóveis, digam isso aos 14 milhões que dependem do sector na Europa”

Entrevista Carlos Tavares Presidente executivo do grupo Stellantis

in Expresso, por Vítor Andrade, 01-02-2024


Gere 14 marcas automóveis, produzidas em 90 fábricas, que empregam 260 mil pessoas de 160 nacionalidades, entre as quais estão a Abarth, Alfa Romeo, Chrysler, Citroën, Dodge, DS, Fiat, Jeep, Lancia, Maserati, Opel, Peugeot, Ram e Vauxhall. O volume de negócios é mais ou menos equivalente ao Produto Interno Bruto português. Carlos Tavares, 65 anos, é um gestor global, discute indústria e estratégia com os maiores políticos da atualidade, não dispensa uma conversa com um trabalhador ou com um cliente e, sempre que pode, dá um salto a Portugal. É natural de Lisboa, mas tem um carinho especial por uma quinta no Douro, de que fala regularmente. Agora está empenhado na ‘batalha’ da eletrificação dos motores dos seus carros, num investimento total de €50 mil milhões. Já tem 30 modelos elétricos no conjunto das suas marcas e espera chegar aos 48 até ao final deste ano. Mas conta com concorrentes de peso, sobretudo chineses, e também com a norte-americana Tesla. Vamos assistir a uma ‘guerra de preços’ que considera “pouco razoável”.

Presumo que já seja um utilizador de carro elétrico nas suas deslocações diárias?

  • Ainda não. Como estou sempre a ir de um país para o outro, passo mais tempo no avião do que no automóvel. Mas obviamente que, quando chego a outro país, está sempre um carro à minha espera e muitas vezes é elétrico.

Até quando é que iremos ter a mobilidade elétrica apenas acessível às classes altas e aos ricos?

  • Não se pode falar de casos elétricos sem se falar de democracia. Uma democracia em que as pessoas não se podem deslocar livremente de um ponto A para um ponto B a um custo razoável vai, certamente, enfrentar problemas graves a nível da sua classe média. Portanto, para mim a questão dos carros elétricos não é a mais importante. A questão mais importante é como é que a gente vai proteger a liberdade de movimento das classes médias, que se habituaram, e muito bem, a tomar decisões de forma espontânea, e por isso essa espontaneidade na liberdade de movimento só pode ser atingida se os carros elétricos forem de facto acessíveis.

O Grupo Stellantis já está a trabalhar nesse sentido?

  • Da nossa parte já estamos a colocar no mercado um carro elétrico (o Citroën C3) a partir dos €23 mil. Aliás, acho que as encomendas já vão ser aceites daqui a poucas semanas. Já é um preço competitivo e terá uma autonomia de 300 a 400 quilómetros, consoante o tipo de condução. Claro que esse veículo dá pouco lucro, mas é para começar a responder a essa expectativa da classe média. No entanto, de um momento para o outro não poderíamos fazer todos os veículos elétricos a esse nível de preços. O ponto positivo é que, apesar desse preço muito competitivo, ainda conseguimos fazer um pouquinho de lucro. É pouco, mas conseguimos. Portanto, estamos aí. Mas vamos assistir aqui a uma corrida entre as construtoras.

Vamos assistir a uma guerra na quebra de preços entre as construtoras automóveis a qualquer custo?

  • Depende dos construtores. Para mim, é óbvio que um dos nossos concorrentes já destruiu uma boa parte da sua criação de valor, com políticas de preços que considero pouco razoáveis. São preços que podem ser agradáveis para os consumidores durante um certo tempo, mas aqueles que tinham comprado o mesmo modelo há seis meses por um preço bem mais elevado irão sentir que o valor de revenda do seu automóvel baixou muito.

Portanto, há políticas de preços que não estão orientadas para o médio e longo prazo?

  • Eu acho que as empresas têm que trabalhar na redução de custos. E à medida que vamos conseguindo reduzir os custos, protegendo as margens para proteger a sustentabilidade da empresa, iremos baixando os preços.

A diminuição de preços para criar tal democratização não irá comprometer a sustentabilidade financeira das empresas?

  • Acho que há aqui um equilíbrio muito difícil. Vamos entrar no período de apresentação dos resultados financeiros de 2023 e, depois disso, vamos poder comparar com os resultados de 2022, nomea­damente junto daquelas que baixaram os preços — e eu já vi um certo número de coisas que me indicam claramente que vai haver uma rentabilidade que irá baixar imenso para essas empresas, porque baixar preços sem resolver custos é destruir o valor.

Mas isso pode ser uma boa notícia para o consumidor, pelo menos no curto prazo.

  • Exato, mas todos nós precisamos de empresas saudáveis, que gerem emprego, que desenvolvam novas tecnologias, que criem riqueza para o futuro. Por conseguinte, temos todo o interesse em que a dimensão acessível da mobilidade limpa seja assegurada pela redução de custos, para que possamos, ao mesmo tempo, garantir a sustentabilidade das organizações.

Vai alimentar a redução de preços para que todos possamos comprar veículos elétricos?

  • Já demos um primeiro passo com o Citroën C3, que, como disse, sairá para o mercado a partir dos €23 mil. Não podemos fazer tudo de uma só vez, mas também não podemos esperar ter a mesma rentabilidade, porque iremos precisar de ter um pouco de volume para que esse volume — que está a crescer — alimente a máquina da redução de preços, embora haja aqui um problema que é o do ‘choque com a realidade’.

Quer explicar melhor?

  • O choque da realidade indica-nos que, de facto, as classes média e média baixa não têm minimamente acesso a este tipo de mobilidade [elétrica]. Por enquanto, esse é o grande problema e isso é uma questão que choca com as tomadas de posições políticas sobre as limitações às vendas de certo tipo de motorizações. Estamos aqui numa ‘viagem’ que vai durar pelo menos 10 anos. Ora, se o poder político for dogmático, volta e meia vamos esmagar a cara contra o muro da realidade. Ou seja, o dogmatismo que nos é imposto cria a frustração de toda uma classe média das nossas sociedades.

O que é que a classe média pode fazer?

  • Vai mudar de rumo político, para os extremismos. E esse novo rumo político vai dar cabo do processo de descarbonização das sociedades. Estamos num caminho perigoso. Temos de ser realistas e pragmáticos.

Como é gerir um grande grupo num contexto como o que descreve?

  • Estou à frente de um grupo que é global, portanto, se não enfrentar os meus concorrentes chineses na Europa, vou enfrentá-los em África, ou na América Latina, ou noutro sítio qualquer. Não estou interessado em protecionismos europeus por uma razão simples: irei ter que enfrentar os concorrentes mais ‘perigosos’ que tenho no planeta neste momento, que são os chineses. Vou travar esse combate com eles e claro que a redução de custos que vamos ser capazes de criar irá ser muito útil para as propostas no mercado europeu.

O que acontece à Europa se optar pelo protecionismo?

  • Se formos proteger o mercado europeu, o que vai acontecer é uma inflação. Primeiro, os carros elétricos na Europa vão ficar mais caros do que poderiam ser. A segunda consequência é que iremos estar numa impossibilidade total de exportar automóveis a partir da Europa para o resto do mundo, porque não vamos ser competitivos em custos e porque não estamos submetidos a uma concorrência feroz da parte dos chineses. Portanto, não temos interesse em fazer isso a médio prazo. A curto prazo pode ser uma decisão demagógica que vai agradar a alguns, mas…

A China já consegue construir carros elétricos com a mesma base de custos dos carros com motor a combustão?

  • Trata-se de um cálculo muito simples: a tecnologia elétrica é 40% mais custosa do que a tecnologia térmica. É isso que estamos a tentar reduzir. Acontece que os chineses têm uma competitividade à saída das fábricas superior em 30% em relação a nós. Ou seja, estão mais ou menos ao mesmo nível nos custos dos dois tipos de motorizações.

Se assim é, porque é que os preços dos carros elétricos chineses ainda são tão elevados, como os europeus?

  • Porque não querem ser acusados de um ‘banho de sangue’ social.

O que é que quer dizer exatamente com essa expressão tão violenta?

  • Quer dizer que, se eu for obrigado a baixar preços para combater a entrada dos chineses, o mercado fica aberto sem eu ter capacidade para proteger as minhas margens. Vou pôr a minha empresa em dificuldades e, como se sabe, uma empresa que está em dificuldade é sinónimo de uma reestruturação social. Era estar a condená-la, com milhares de pessoas no desemprego. É um problema social.

Neste processo de eletrificação automóvel que o grupo Stellantis tem em curso, vai ser dispensada mão de obra ou terá de contratar?

  • O que se pode dizer com uma certa certeza é que a mão de obra vai ser diferente. Uma das grandes dificuldades das sociedades ocidentais está em compreenderem como a transformação não é uma adição. Não estamos a pôr aqui mais uma camada de qualquer coisa.

Ou seja, está a falar da requalificação profissional?

  • Vai haver perfis de empregos que são menos necessários e outros perfis que são imprescindíveis. O que eu estou a ver neste momento é que está mais ou menos estável, mas estamos a contratar muitos mais engenheiros de software, por exemplo. Isso está a ser compensado com menos atividade noutros domínios, como, por exemplo, no enquadramento das fábricas de produção de motores térmicos.

Está previsto o encerramento de alguma fábrica que não se tenha adaptado?

  • Neste momento não. Elas vão ser convertidas todas, mas depende muito do que os países europeus quiserem fazer. Note-se que os cidadãos gostam imenso de automóveis, porque são os objetos de proteção da sua liberdade de movimento, mas estão a viver num contexto europeu que é autofóbico, com restrições à utilização do automóvel, com mais taxas, com mais hostilidade. Há uma hostilidade assumida contra o automóvel.

Isso é assim tão evidente?

  • Claro que é. Mas então digam o que pretendem, porque se não querem automóveis então não precisam de fábricas, não é? Parece lógico. Se estão a combater o automóvel todos os dias, de manhã, ao almoço e ao jantar, e não gostam da liberdade que lhes oferece, digam isso aos 14 milhões de empregados do sector e aos seus familiares. Os cidadãos têm de perguntar aos seus políticos o que é que defendem para o sector — e vamos ter eleições europeias em breve. Nós já estamos a falar com os cidadãos, num fórum que criámos para o efeito, em vez de estarmos a falar aos políticos; sim, porque estes estão sempre a ver ‘para que lado sopra o vento’. Há claramente um desfasamento entre a tomada de decisão política e a realidade do dia a dia dos cidadãos.

Acha que se impuseram prazos que não vão, de todo, ser cumpridos?

  • Depende do risco social que os políticos quiserem assumir. Estamos a fazer uma transformação num tempo extremamente curto. Tivemos um século para o desenvolvimento de veículos com motores térmicos e agora temos 10 anos para desenvolver a mobilidade elétrica. O nível de exigência é brutal para as empresas e eu tenho imenso respeito pelos meus empregados, porque se eu pedisse a qualquer Governo europeu para impor aos seus cidadãos 10% do que nos está a fazer na Stellantis, a malta ia toda para a rua contestar. Era uma revolta imediata.

Os políticos têm noção desse esforço de transformação exigido à indústria?

  • Já disse a governantes de vários paí­ses, inclusive dos Estados Unidos, que estão a impor uma nova tecnologia que ainda está na sua infância. Às vezes as pessoas esquecem-se desse facto, mas, se acontecer algum problema, têm de se lembrar disso. Estão a impor à indústria automóvel uma modificação tão profunda de uma tecnologia que está balbuciante, em que ainda não vimos tudo, e isso é um fator de risco.

Mas, como é óbvio, os carros com motores térmicos não vão desaparecer de um dia para o outro…

  • Como é óbvio, não é? Neste momento, no planeta, temos 1300 milhões de carros com motores térmicos e o mercado mundial anual novo é de 85 milhões. O que é que a gente vai fazer com eles? Vamos dizer às pessoas: ‘olha, a partir de amanhã muda tudo’?

Quando é que o grupo Stellantis vai deixar de produzir carros com motores a diesel?

  • É muito simples: quando o mercado já não os quiser.

 


 

NÚMEROS

37%

  • foi quanto aumentaram as vendas de carros elétricos na Europa em 2023, face ao ano anterior. As vendas ultrapassaram 1,5 milhões ?de unidades

14,6%

  • foi a quota de mercado dos carros elétricos na Europa em 2023, ficando acima da quota preenchida pelos carros a gasóleo (13,6%)

25.815

  • foi o número de carros comercializados pela Peugeot em Portugal, a marca mais vendida no ano de 2023

 

 

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