E que sonho é esse? 100% de veículos elétricos vendidos — e o fim da produção de veículos a combustão. Mas quem compra está ansioso. Quem vende também. E há a China – que tem uma relação diferente “com as regras”
in CNN Portugal, por Tiago Palma, 28-11-2024
Há um problema para resolver: precisamos de electrificar os nossos carros, todos, mais cedo do que tarde, a bem do ambiente. A Europa a 27 quer. O Reino Unido, que já foi o Estado-membro número 28 mas já não é, também quer. Só que o problema não é de resolução fácil: o mercado automóvel estagnou, vendem-se poucos automóveis e os que se vendem são mais do fóssil que do futuro.
Mas falemos dos britânicos – que têm factos para partilhar com os portugueses (e os demais). Em 2023, Rishi Sunak, líder do então governo conservador britânico, prometia (para 2024) “um dos sistemas regulatórios mais avançados e ambiciosos do mundo”. E o ano de 2024 arrancou no Reino Unido entre as badaladas do Big Ben e uma obrigação imposta aos fabricantes de carros no país: uma quota mínima na venda de veículos elétricos.
Palavra de Sunak: no fim de 2024, 22% das vendas de carros novos tinham de ser elétricos, aumentando para 33% em 2025, para 38% em 2027, para 52% em 2028, para 66% em 2029 e para 80% em 2030. Em 2035 o objetivo era a plenitude: 100% de veículos elétricos vendidos — e o fim da produção de veículos a combustão.
Ora, o governo mudou. Rishi Sunak caiu. Keir Starmer, do Partido Trabalhista, é primeiro-ministro desde julho. E a venda de carros elétricos, a procura dos britânicos, até vem crescendo. Em outubro venderam-se 29.800, por exemplo. Em setembro atingiu-se um recorde de 56.300 automóveis elétricos vendidos. E os elétricos representam no presente 18,1% das vendas. Ainda assim, noticia a Reuters, os fabricantes acreditam ser impossível (já neste ano e, sobretudo, nos que ainda virão) cumprirem as quotas que lhes foram impostas — e vão pagar multas pesadas se isso não acontecer.
Esta semana, a Stellantis, dona da Fiat, Peugeot, Citroën ou Opel, disse que fecharia uma fábrica em Luton. São pelo menos 1.100 empregos perdidos. Empregos que se vão juntar aos 800 que a Ford vai cortar nos próximos três anos. Outra marca, a Jaguar — uma fabricante britânica —, anunciou que vai deixar de vender carros novos (embora venda usados) no Reino Unido em 2025 e 2026, ano em que apresenta um novo modelo elétrico.
Ainda segundo a Reuters, as ameaças (de encerramentos, despedimentos e, garantidamente, incumprimentos) dos fabricantes preocupam o governo do Reino Unido, que até já se pronunciou, pela voz da ministra das Finanças, Rachel Reeves – que disse que o Executivo acabou de lançar uma consulta “para analisar os planos que herdámos do Governo anterior”. O mesmo é dizer, e disse-o Rachel Reeve, que “é realmente importante garantir que conseguimos o equilíbrio certo e temos o apoio adequado ao setor automóvel, à indústria automobilística, na Grã-Bretanha”.
A leitura final pode ser: o Governo de Keir Starmer vai recusar nas metas. Porque, voltando às palavras da ministra das Finanças, “queremos que as pessoas comprem veículos elétricos, mas queremos manter os empregos”.
E a Europa, e a União? E Portugal?
O caso não é totalmente diferente. Há metas. E não há vendas (não só dos elétricos, mas dos automóveis novos em geral) que garantam que se cumpram as metas. Na União Europeia, no presente ano e até outubro, as vendas de elétricos caíram 4,9% — em outubro, em concreto, venderam-se “somente” 124.907 unidades em 27 países.
A perda maior é no “motor” da economia europeia, a Alemanha, com um tombo de 26,6% — dizem os analistas que o tombo foi impulsionado pela retirada de incentivos do governo de Scholz à compra destes veículos.
Neste momento, na UE, segundo números da ACEA, a Associação Europeia de Fabricantes de Automóveis, os veículos elétricos representam uma quota de 14,4%. Os automóveis híbridos plug-in representam 7,7%, por exemplo.
Em Portugal, a primazia na hora da compra de um carro novo ainda é dada à gasolina e ao diesel. A gasolina representa 30,8% do mercado e o gasóleo 7,6%. Estes são dados de outubro. No mesmo mês venderam-se mais 28,2% de elétricos do que em 2023. E, no acumulado do ano, mais 14,7%. Ainda assim, tal como na Europa, tal como no Reino Unidos, as metas estão bem distantes.
Segundo o estudo “Mobilidade Elétrica em Portugal”, da Católica Lisbon School of Business & Economics, Portugal não vai atingir as metas de neutralidade carbónica até 2035, quando 36% dos automóveis novos vendidos têm de ser elétricos, nem até 2050, quando têm de ser 100%. Mesmo que a partir de agora só se vendam veículos elétricos. Porquê? Porque, segundo os autores, e embora já haja perto de 130 mil veículos 100% elétricos a circular em Portugal, as políticas públicas de incentivo à compra estão bem longe das melhores práticas internacionais — embora haja subsídios e créditos fiscais — e, por exemplo, faltam postos rápidos e ultrarrápidos adequados aos fluxos fora das grandes cidades. O mesmo é dizer: carregam, ou carregam mais facilmente, aqueles que têm uma garagem.
Por sua vez, a associação ambientalista Zero, no caso português, já veio pressionar o Governo para que acelere as metas, garantindo neutralidade carbónica, não em 2050 mas logo em 2035. Segundo a associação, a meta é “perfeitamente viável”, os consumidores veem os elétricos como “atraentes”, mas ainda nos falta, como referia o estudo da Católica, melhorias práticas, nomeadamente a nível dos carregamentos. Ainda assim, é a Zero quem nos diz: “Ao contrário do que muitas vezes se diz, até 2035 os 100% veículos elétricos vão ser muito mais baratos de comprar e de utilizar do que os poluentes automóveis de combustão”.
“Uma visão otimista é talvez de 1/3 de eléctricos para 2/3 de combustão”
Hélder Barata Pedro, secretário-geral da Associação Automóvel de Portugal (ACAP), “pensando mais até na Europa do que no Reino Unido”, diz que a posição das associações de fabricantes é “clara”: as metas são para cumprir mas não vão cumprir-se. “Foram definidas metas de descarbonizarão, queremos cumpri-las, mas se for impossível cumprir — porque não podemos obrigar os consumidores a comprarem carros — não podemos ser o único setor que, em incumprimento, pagará multas pesadas.” Mais: “Já em 2025 haverá objetivos para cumprir. A indústria preparou-se, há 320 modelos elétricos — quando em 2020 eram só 50 —, mas o mercado europeu estagnou.”
A visão de José Couto, presidente da Associação de Fabricantes para a Indústria Automóvel (AFIA), é semelhante. As metas são mais ambiciosas do que a resposta do mercado. “Vamos sabendo do que se está a passar no Reino Unido, mas sobretudo nos mercados europeus — e o mercado português aproxima-se mais dos europeus, a nível de vendas e de metas. E a ideia com que se fica é a de que será muito difícil chegar a 2035 e cumprir com aquela proporção de carros elétricos novos vendidos. Vai certamente ser abaixo.” Para José Couto, este é o otimismo possível: “Uma visão otimista é talvez de 1/3 de eléctricos para 2/3 de combustão. Mas até para isso estamos dependentes da resposta do mercado — e ninguém pode avinhar o que vai acontecer.”
Já para Gonçalo Tomé, vice-presidente da Associação Portuguesa da Indústria de Plásticos (APIP), que integra empresas que produzem componentes para a indústria automóvel, a União Europeia foi “vanguardista” em relação às políticas ambientais, incluindo no setor automóvel, “mas peca às vezes por algum irrealismo”. “A União Europa é ‘vanguardista’ em relação às políticas ambientais, incluindo no setor automóvel, mas peca às vezes por algum irrealismo. As metas em concreto são hoje muito difíceis de se concretizarem. Não vale a pena dramatizarmos, mas devemos estar preparados. E um problema é de concorrência. No ano 2000, a China produzia 3% dos carros no mundo. Em breve vão ser 30%. E não produzem somente automóveis chineses. E a Europa assistiu impávida. Se calhar, se tivesse a velocidade da China, as nossas metas seriam alcançáveis.”
José Couto, da AFIA, pede adequação. “Adequação à realidade, à economia, ao consumo.” E insiste na ameaça vinda do Oriente. “Rever metas? Sim, também é preciso. E é preciso perceber, não ignorar, que há novos players na Europa, nomeadamente vindos da China, e que se calhar não têm essas preocupação em cumprir as metas – como fazem os europeus. A probabilidade de não cumprirem é grande.”
Ainda para José Couto, e numa análise a partir “do ponto de vista dos fabricantes de componentes”, sempre que uma marca, um fabricante de automóveis, diz que vai encerrar uma fábrica — como é agora a notícia no Reino Unido e noutras nações europeias —, “é evidente que preocupa o setor”.
Hélder Barata Pedro, da ACAP, acredita que é da resposta de Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, que resulta o aumento ou diminuição da preocupação. “Ainda esta quarta-feira ela referia que a indústria automóvel é muito importante e que ela própria vai seguir de perto, acompanhar pessoalmente, o que se vai seguir. É pelo menos um sinal importante. E os fabricantes, os fornecedores e os concessionários aguardam com expectativa. A eletrificação é fundamental mas falta mais atratividade.”
Como ser mais atrativo?
“Os poderes públicos tem que se organizar. Primeiro, é necessário que haja um cobertura de carregamento mais alargada, uma rede bem mais alargada. Não havendo, há uma ‘ansiedade’ nos eventuais compradores. Se não têm onde carregar os elétricos, não compram os elétricos. Por outro lado, a política de incentivos à compra tem de ser ainda maior. Se isto, isto em concreto, não mudar, será muito complicado”, antevê Barata Pedro.