Entrevista a Mira Amaral, ex-ministro da Indústria e da Energia, sobre O SECTOR AUTOMÓVEL
in Revista Industrial Forum Portugal, nº 5, entrevista de Nuno Luz
Nascido em Lisboa, engenheiro de formação, Luís Mira Amaral foi ministro da Indústria e da Energia, tendo sido também o titular da pasta do Trabalho e da Segurança Social. Presidiu também aos conselhos da indústria e da energia da CIP – Confederação Empresarial de Portugal) e tem uma extensa carreira como administrador e consultor de empresas. Mira Amaral é, pois, uma testemunha e uma voz particularmente autorizada para nos falar de indústria em Portugal, com especial atenção à indústria automóvel e aos seus vários sectores.
Como ex-ministro do sector em Portugal, e como pessoa desde há muito ligada à indústria, como vê a evolução da indústria automóvel à escala internacional?
Quando falamos do futuro da indústria automóvel falamos imediatamente de indústria 4.0, falamos de robótica, de inteligência artificial, de nanotecnologias. Elas são decisivas na indústria automóvel. Em termos gerais, são decisivas em todos os sectores da economia. E então na indústria automóvel, que é um sector altamente competitivo, são particularmente decisivas.
Porém, quando se fala em indústria 4.0, fala-se muito em digitalização. Ora, eu acho que o maior avanço neste momento até é a conectividade, não é a digitalização, que essa já vinha de trás. A digitalização já vinha da indústria 3.0. Só que antigamente a gente apenas digitalizava ou automatizava o equipamento, e hoje em dia, com o 4.0, a gente digitaliza todo o sistema empresa. E não só o sistema empresa é digitalizado, como as relações entre a empresa e os fornecedores e os clientes também são digitalizadas, e acabamos por ter as plataformas de cooperação e comunicação entre eles. E este é que é o grande avanço
Agora os automóveis têm uma coisa curiosa. Você vai ter um confronto entre as empresas tradicionais, e o que é essas empresas tradicionais estão a tentar fazer?, estão a tentar digitalizar e dar mais conectividade aos seus automóveis. Partem de um modelo tradicional do automóvel clássico, que já tinha em todo o caso muita electrónica, mas que vai ter crescentemente sistemas digitais e de conectividade exterior.
E estas empresas tradicionais de automóveis vão debater-se com os players da sociedade da informação, que partem de outra abordagem, o que eles querem é fazer computadores com rodas. Havia as empresas que tinham carros e metiam lá computadores, e agora vão-se bater com estes players da sociedade da informação, vai haver este choque entre eles muito forte.
E como avalia, neste contexto, a resposta da indústria portuguesa? Estamos preparados para ter uma palavra a dizer – e, se sim, como?
Se há sector que tem de facto uma base tecnológica é a fileira automóvel em Portugal. Não só a dos componentes como aqueles que montam automóveis, como a Autoeuropa. Eu vi o investimento que foi feito na Autoeuropa para fazer o T-Roc, eu fui lá visitar a fábrica, e aquilo é uma robotização maciça. E portanto vê-se ali um nível de evolução tecnológica de excelência da indústria 4.0. E nos componentes de facto essa evolução tecnológica também é muito grande.
Se há sector que está a trabalhar em conjunto com as universidades e os politécnicos é o sector de componentes para automóveis. Ainda há pouco estive em Oliveira de Azeméis e vi uma escola do ensino superior politécnico da Universidade de Aveiro, que é a Escola Superior de Aveiro Norte, que é especializada em impressão 3D, em fazer peças manufacturadas em impressão 3D para a indústria automóvel, colaborando intimamente com a Simoldes.
E se há sector que tem crescido muito em Portugal nos últimos anos, tem sido este sector, que tem tido um crescimento impressivo.
A indústria automóvel, os vários sectores somados, é visivelmente um motor cada vez mais importante da economia portuguesa. Os números falam por si.
Sim, estamos a falar de um sector que tem hoje em dia 11,3 mil milhões de euros de volume de negócios, 9,4 mil milhões de euros de exportações, o que quer dizer que 83 por cento é para exportações. É um sector que representa cinco por cento do PIB, oito por cento do emprego na indústria transformadora, isto no sector dos componentes. São 235 empresas e 55 mil pessoas. Se você acrescentar a Autoeuropa mais a PSA em Mangualde, são hoje em dia, mais a Mitsubishi, aqueles que montam carros, são, se quiser chamar, de produção automóvel, você tem um sector que vende neste momento 13,4 mil milhões de euros, já são 6,4 por cento do PIB, com 295 mil automóveis produzidos e com 75 mil postos de trabalho.
Veja que se falamos nos componentes ou se falarmos na fileira automóvel, se juntarmos aquelas empresas que montam e produzem automóveis, você tem números impressivos, que têm um peso já relevante na economia nacional, quer em termos de PIB, quer de exportação. Sobretudo, têm tido uma taxa de crescimento nos últimos anos absolutamente espectacular.
Como podemos manter – para usar outra imagem ligada ao automóvel – esta velocidade nos indicadores positivos?
Chamo-lhe a atenção do seguinte: em todos os países do mundo, industrializados ou em vias de industrialização, todos eles perceberam que o sector automóvel é um sector de intensidade tecnológica, que puxava por mão-de-obra qualificada e que puxava pelas ligações entre as universidades, os politécnicos e as empresas. Pois bem, isso em Portugal tem acontecido de forma evidente.
E entre nós há hoje mais, melhores, maiores centros de competência, centros tecnológicos ligados ao automóvel. Se queremos competir a nível internacional, é este o principal caminho?
Sim, a indústria automóvel em Portugal tenta já ter centros de competência. O futuro da indústria automóvel entre nós, diferenciando-se de Marrocos e de outros países em vias de desenvolvimento, está numa maior competência tecnológica que nós tenhamos, que envolve o digital mas não só. Você tem as nanotecnologias, tem os têxteis técnicos. A Têxtil Manuel Gonçalves vai fazer têxteis para a Mercedes, chamo-lhe a atenção para a Efacec a fazer carregadores para a Porsche, chamo-lhe a atenção da Sonafi a fazer peças para motores eléctricos. Portanto a componente tecnológica não é meramente digital. Em termos genéricos, para você se diferenciar de Marrocos tem de estar tecnologicamente à frente de Marrocos, com mão-de-obra altamente qualificada, e portanto tem de ter aqui uma grande ligação das empresas às universidades e aos politécnicos e aos centros de saber. É assim que você se diferencia de Marrocos.
Não se esqueça que a indústria francesa está em Marrocos com um grande pólo de desenvolvimento, eles têm salários mais baixos do que os nossos, e portanto já não podemos competir com as armas de um país menos desenvolvido. A competência técnica e tecnológica é mais do que decisiva para Portugal. E agora repare, quando você tem a Bosch em Braga, para mim é um centro de competência digital para a indústria automóvel, está a fornecer muitos equipamentos para a indústria automóvel.
Que mudanças podem trazer, para Portugal, as novas soluções de mobilidade, as novas fontes de energia, até a condução autónoma? Dito de outra maneira, como vamos nós contribuir para estas alterações e como pode a indústria portuguesa beneficiar com elas?
Para já devo dizer-lhe que os motores de combustão interna, ao contrário de algumas declarações, ainda vão durar mais tempo do que as pessoas pensam. E o veículo eléctrico não vai ser massificado tão rapidamente como muitos pensam. Portanto ainda vai haver espaço e oportunidade para os veículos de combustão interna. Mas o carro eléctrico, que eu não sei se é o carro eléctrico com bateria é o futuro, porque há outra solução que é o hidrogénio, o carro eléctrico, dizia, é mais simples, tem menos componentes, do que os veículos de combustão interna. Quando a ser mais amigo do ambiente, é discutível, porque ninguém está a fazer contas às emissões de CO2 das baterias e à sua reciclagem.
Não sei se o futuro é o veículo eléctrico com bateria ou se é o hidrogénio. Não sei, mas em todo o caso, a maioria dos componentes utilizados na motorização eléctrica são comuns aos modelos convencionais, e portanto o que eu lhe digo é que a indústria portuguesa, que tem tido tanto sucesso nos componentes para o sector automóvel, está apetrechada para fazer os componentes para o carro eléctrico. Há uma área em que ela não está, mas isso é um drama que não é só de Portugal, é da indústria europeia, que é a das baterias. Aliás os alemães estão em pânico com o domínio que os chineses ou asiáticos podem ser sobre as baterias para o carro eléctrico.
Portanto há aqui um problema na Europa que é nosso também. Já houve dois projectos de fábricas de baterias que não arrancaram, há uma empresa chinesa que diz que vai fazer uma grande fábrica de baterias na Europa, mas em todo o caso nós em Portugal não estamos de facto apetrechados para as fazer. Agora, todos os outros componentes para o carro eléctrico, quem faz componentes para o carro convencional faz para o carro eléctrico, porque até são mais simples.
Depois há outra coisa que é preciso não esquecer. É que a gente fala muito na mudança de motorização, mas há aqui outra coisa, que é a lógica de utilização do carro, que vai mudar. Em vez de termos um veículo proprietário, os jovens para mim é evidente que já não têm a ambição de ter carro. A lógica é a partilha.
É a mudança de paradigma da posse para o serviço de que falam os investigadores.
E isso obviamente tem implicações materiais nos carros, porque têm de ter materiais mais leves e resistentes. Um tipo que utiliza um carro que não é seu, se calhar tem menos cuidado com ele do que um tipo que usa um carro proprietário. Foi até a TMG, a divisão automóvel, pois eles já estão a trabalhar nesta perspectiva, e pouca gente ainda pensa nisto. Esta nova mobilidade dos carros partilhados exige novos tipos de materiais e novos tipos de tecidos e revestimentos, e eles já estão a responder a isso.
E a mobilidade tem mais uma vez a ver com a conectividade, é a possibilidade de chamarmos um carro. E agora, não somos nós que temos as grandes marcas globais, mas você veja que mesmo as empresas como a Mercedes, eu vi isso pela primeira vez em Madrid, em vez de vender Mercedes em Madrid, fez uma empresa que é o Car2go que aluga Smarts. Em vez de vender um Smart, aluga- o. Portanto os fabricantes mudam o modelo de negócio. Em vez de venderem o carro, vendem o serviço. Quer dizer que tudo isto está hoje a ser alterado, não é só a motorização.
E nos automóveis sem condutor, qual pode ser o nosso papel?
Eu acho que nós, nos tais centros de competência, não estou a ver o país a fazer o carro sem condutor, mas estou a ver o país como tendo competências de apoio às experiências que os grandes players vão fazer de carros sem condutor. Portanto o país, com os centros de competência e com a capacidade que tem instalada, pode servir de teste a alguns carros que os players mundiais estejam a experimentar. Portugal é um bom mercado para fazer testes, pois não sendo um mercado grande, já tem as competências e os skills que os mercados grandes, mais desenvolvidos, têm.
E repare, nesta matéria, pode ter em Portugal nos carros sem condutor, uma coisa semelhante ao que os ingleses têm com o desporto automóvel. Perderam os grandes fabricantes, mas mantiveram um conjunto de centros de competência e fornecedores para apoiar o motorsport. E portanto Portugal não tem a veleidade de ter um grande construtor, mas pode ter esses centros de serviços para apoiar o desenvolvimento do carro automático. O peso de uma economia mais pequena tem de ser ao nível da inteligência.
A nível das políticas públicas, a indústria automóvel portuguesa, olhando para o seu peso na economia do país, tem sido bem apoiada?
Eu acho que a classe política tem nesta matéria algum cinismo. Quando você vê um primeiro-ministro ou um governante lá ir visitar as fábricas ou os centros, eles dizem o mesmo que eu tenho estado a dizer. Mas depois veja, e aí o presidente da AFIA, o engenheiro Tomás Moreira tem toda a razão, o contexto sócio-laboral português não é favorável. Se há sector onde você precisa de flexibilidade, de capacidade de resposta rápida mas com flexibilidade porque as encomendas variam rapidamente, é no sector automóvel.
E quando a gente ouve dizer que querem acabar com o banco de horas e outros instrumentos de flexibilidade, isto é um desastre. Portanto ele lamenta-se e bem que o contexto sócio-laboral não é nada favorável ao sector automóvel. Você vê um comportamento cínico e dúplice dos governantes quando vão visitar uma fábrica e dizem que é um centro de excelência, conseguimos atrair o investimento, somos fabulosos, mas depois ao nível da legislação e do contexto não têm feito nada para dar condições e a indústria automóvel e dos componentes tem toda a razão de queixa dos governos nesta matéria.
Esse problema está directamente ligado a outro, que é o dos recursos humanos, ou a falta deles.
Esse é outro aspecto de que pouca gente, da que referi, fala. Visitando muitas empresas de componentes do sector metalomecânico, diziam-me, ‘Eu tenho produto, eu tenho tecnologia, eu tenho preço, eu tenho clientes, o que é que me falta? Não tenho mão-de-obra especializada’. A falta de quadros intermédios e especializados é dramática. Há empresas que podiam já ter crescido muito mais mas têm neste momento um problema muito grande que é a escassez de gente qualificada. E você veja que centros de formação protocolares excelentes, como o Catim e outros, foram sujeitos a cativações pelo ministro das Finanças. Isto numa altura em que há uma grande urgência de formar a matéria-prima humana de que a indústria necessita. E a indústria queixava-se e bem destas cativações.
Num ambiente de mudança acelerada a nível global, existe algum risco para nós de quebra mais abrupta nestes sectores?
Um fenómeno do tipo bolha é um fenómeno mais ligado à nova economia e às startups, muitas vezes a coisas especulativas sem base real de sustentação. A indústria automóvel não tem essas características. Mas a indústria automóvel está numa encruzilhada. Perceberam que têm de avançar mais pelos eléctricos, mas há muitas hesitações sobre que modelos. Vê-se isso muito bem acompanhando as indústrias dos plásticos e dos moldes. A produção da indústria da injecção de plásticos e de plásticos mantém-se permanente, mas a de moldes está a baixar.
Porque quando se encomenda um molde é para fabricar um novo modelo, e quando começam a baixar as encomendas de moldes, é sinal de que há um impasse e não há uma definição de novos modelos. E portanto estão a fabricar o que têm e quanto ao resto há uma alguma indefinição. O sector automóvel está numa encruzilhada tal que alguns desses fabricantes, para quem a nossa indústria fornece, estão a sofrer dessa encruzilhada estratégica. Em Portugal o sector automóvel tem tido um grande crescimento e pode não continuar a ser assim, mas porque o sector a nível mundial está neste encruzilhada.
Ainda é possível trazer para Portugal outra Autoeuropa?
Se o Muro de Berlim não tem caído tão cedo, se calhar nós tínhamos conseguido outro grande fabricante alemão para Portugal além da Autoeuropa. Mas depois da Autoeuropa e do fim do comunismo o contexto mudou. Aqui não teve a ver com a competência dos governos. Quem eram os grandes investidores em Portugal no sector industrial? Eram os alemães e também os americanos. No contexto da queda do Muro de Berlim e também da abertura da China ao mundo, nós vimos a indústria alemã virar-se para o Leste e deixar de investir em Portugal, e os americanos a virarem-se para a China.
Neste contexto, não era realista pensarmos em ter outra Autoeuropa. Se eu quisesse ter uma visão cínica, diria que se o comunismo tivesse durado mais dez anos, isso poderia ter trazido vantagens para a indústria automóvel, com a vinda de outro gigante alemão.